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Promessas à periferia

  • Agapan
  • há 8 minutos
  • 19 min de leitura

Décadas de omissões no planejamento urbano transformam vulnerabilidade climática em rotina

Por Arthur Alves*


1ª parte — Periferias esquecidas

Esta grande reportagem se dedicou a responder à seguinte questão: Como as discussões na COP 30 se relacionam com as periferias de Porto Alegre? As entrevistas e análises técnicas aqui apresentadas foram realizadas nos meses que antecederam a Conferência, com o objetivo de capturar a percepção de especialistas e representantes comunitários sobre o tema da justiça climática. A reportagem está dividida em duas partes principais. Esta primeira é dedicada às vozes de ambientalistas e representantes de comunidades, trazendo a percepção crítica sobre a distância entre o discurso climático global e a realidade das periferias. Já a segunda parte foca em uma análise mais técnica, examinando as fragilidades do Plano Diretor de Porto Alegre e sua relação com a vulnerabilidade climática das áreas periféricas.

Enquanto nos palcos globais das conferências do clima se discute o futuro do planeta, as periferias lidam diariamente com as consequências concretas da crise climática — Crédito: Arthur Alves
Enquanto nos palcos globais das conferências do clima se discute o futuro do planeta, as periferias lidam diariamente com as consequências concretas da crise climática — Crédito: Arthur Alves

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A 30ª Conferência das Partes (COP 30) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima marcou seu início no dia 10 de novembro. Treze semanas antes do início da COP, o embaixador André Corrêa do Lago, presidente do evento e da primeira Conferência em solo amazônico, afirmou em entrevista ao podcast Café da Manhã, do jornal Folha de São Paulo, que o Brasil queria fazer do evento “uma COP mais transparente, que mostre como as decisões impactam a vida das pessoas”. Naquele momento, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, conhecido como Itamaraty, e a Organização das Nações Unidas (ONU) ainda pressionavam os países para que estes apresentassem suas novas metas de redução de carbono — as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) — sob o Acordo de Paris realizado em 2015, na COP 21. Em agosto, faltando três meses para o evento, apenas 28 países haviam enviado seus planos, mesmo assim, o discurso brasileiro tentava reposicionar o debate: aproximar a diplomacia climática das realidades concretas, das pessoas que vivem as consequências da crise todos os dias.

Em Porto Alegre, no entanto, a resposta a essa questão já estava sendo escrita nas áreas de maior vulnerabilidade. Longe dos palcos da diplomacia, a investigação da realidade nas periferias e nos movimentos sociais revela que a crise climática não é uma ameaça futura, mas uma injustiça presente, manifestada nas carências estruturais e no abandono histórico. É nesse cenário local de exclusão que o ceticismo em relação às soluções globais centradas no mercado, se torna fundamentado.


Ecocídio urbano

A distância entre o discurso e a prática é percebida pelo jornalista e ambientalista Heverton Lacerda, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), entidade ambientalista sem fins lucrativos fundada em 1971. Para ele, o debate global tem se voltado cada vez mais para soluções de mercado, deixando em segundo plano as populações que mais sofrem com os efeitos da crise climática. Ele cita o mercado de carbono — mecanismo criado para permitir que países e empresas compensem as emissões de gases de efeito estufa comprando créditos ambientais — como um exemplo emblemático dessa lógica. “É uma grande farsa”, afirmou. “Na prática, quem polui continua poluindo, apenas compra os créditos de empresas menores para seguir fazendo isso. É uma solução pensada para atender o mercado”.

Criado pelo Protocolo de Kyoto, realizado em 1997, o mecanismo representou um marco ao estabelecer pela primeira vez, metas obrigatórias de redução de gases de efeito estufa para as nações desenvolvidas. Sua lógica se apoia na ideia de que os países não contribuíram igualmente para a crise climática, o que exigiu a adoção do princípio da Responsabilidade Comum, porém Diferenciada, posteriormente reafirmado no Acordo de Paris. Na prática, o sistema funciona de forma simples: empresas que ultrapassam seus limites de emissões podem pagar para que outras, menos poluentes, “vendam” seus créditos de carbono excedentes. Em teoria, o mecanismo promoveria o equilíbrio das emissões globais. No entanto, como observa Heverton, ele tende a reproduzir as mesmas desigualdades que sustentam a crise climática, permitindo que grandes corporações preservem seus lucros enquanto os custos ambientais recaem sobre as populações mais vulneráveis.

Para Heverton, as conferências internacionais precisam inverter essa lógica, em vez de buscar soluções que atendam ao mercado, devem priorizar aquelas voltadas às comunidades. “O que eu espero da COP 30 é que as soluções sejam pensadas para atender as periferias e as comunidades mais vulneráveis, e que isso aconteça na prática”. Ele lembra que a crise climática não é apenas um problema ambiental, mas uma questão de justiça, que expõe desigualdades históricas e coloca em risco os mesmos grupos que há décadas enfrentam falta de infraestrutura, moradia e saneamento.

Heverton também reforça uma ideia central nas discussões contemporâneas sobre clima: sem justiça climática, não há transição energética justa. Ou seja, não basta reduzir emissões se os benefícios dessa transformação continuam restritos a quem já concentra poder e recursos. Essa é também a pauta que ecoa nos territórios periféricos, onde a luta por direitos básicos — como luz, água e moradia — é, antes de tudo, uma luta ambiental. Ainda de acordo com o presidente, o problema não se resume às políticas climáticas globais ou aos mecanismos de mercado. Ele enfatiza que, no âmbito local, o modelo de desenvolvimento aplicado pelo Estado é ecocida, ou seja, causa danos sistemáticos e contínuos aos ecossistemas, destruindo rios, matas ciliares e áreas naturais essenciais para a absorção da água e a manutenção da biodiversidade.

Esse tipo de desenvolvimento prioriza interesses econômicos imediatos em detrimento da preservação ambiental, aumentando a vulnerabilidade das comunidades locais e comprometendo a capacidade da natureza de sustentar a vida das gerações presentes e futuras, ignorando alertas de décadas sobre a necessidade de proteger rios, matas ciliares e espaços que funcionam como “áreas esponja” para o escoamento da água. Também critica o modelo de desenvolvimento aplicado na sociedade atual, que, segundo ele, confunde crescimento urbano com progresso. “Desenvolvimento do ponto de vista ecológico, não pode trazer destruição. Mas muitos governos pensam em desenvolvimento como mais portos, mais estradas, mais urbanismo, ou seja, mais destruição do meio ambiente. Para nós, isso não é desenvolvimento”, afirma.

Um dos principais pensadores indígenas do país, Ailton Krenak afirma, em “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, que essa separação é uma construção artificial, fruto de uma lógica que colocou o ser humano como algo à parte do planeta: “Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso — enquanto seu lobo não vem –, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ela é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja Natureza. Tudo é Natureza. O cosmos é Natureza. Tudo em que eu consigo pensar é Natureza.”

Essa mesma percepção aparece nas palavras de Heverton, ao falar sobre a importância das matas ciliares, que acompanham as margens dos rios. “Essas matas que ficam dos dois lados são chamadas ciliares, por analogia aos cílios dos olhos. As raízes das plantas entram na terra e deixam o solo firme. A biodiversidade que vive ali, os fungos e micro-organismos, ajudam a segurar essa terra. Quando tiram as matas, o solo perde essa firmeza, causa erosão, e a terra vai para dentro dos rios. Aí os rios ficam mais rasos, assoreados. Quando vem uma chuva forte, a água não tem para onde ir e acaba indo para os lados. É aí que acontecem as enchentes”.

Além de proteger o solo e os rios, ele explica que essas matas funcionam como corredores ecológicos: “É por onde os bichos trilham, fazem ninho, se abrigam. Quando não tem mata, tem lavoura ou cidade, e os animais perdem esse caminho.” Heverton considera que esse processo revela um sintoma mais profundo: a perda do contato com a natureza. Observa que o ser humano, cada vez mais afastado dos ecossistemas que o sustentam, deixou de se reconhecer como parte deles, um dos grandes problemas da humanidade, na sua avaliação.

Nesse contexto, a história da Agapan oferece um exemplo de atuação ambiental com visão política e estratégica. Criada em 1971, a entidade surgiu a partir da percepção da necessidade de lutar em defesa do meio ambiente de forma articulada e estruturada, diferente das entidades preservacionistas pontuais, que se limitavam a proteger uma floresta, uma espécie ou um jardim específico. A Agapan, segundo Heverton, apresenta um viés ecopolítico, atuando de maneira transpartidária, colaborando com a criação de legislações e propondo novas ideias de lei, além de monitorar e proteger a implementação das normas existentes.

Heverton enfatiza que a ciência crítica e conectada à sociedade é fundamental para orientar políticas públicas responsáveis. Para ele, dados científicos não devem ser interpretados de forma isolada ou instrumentalizados para atender a interesses econômicos, como ocorre quando corporações patrocinam pesquisas favoráveis ao uso de agrotóxicos ou práticas nocivas ao meio ambiente. A exclusão de movimentos sociais e comunidades periféricas nos processos decisórios agrava o problema, mantendo desigualdades e limitando a eficácia das políticas ambientais.

O jornalismo ambiental surge, nesse cenário, como ferramenta estratégica para denunciar, mobilizar e engajar a sociedade. O também jornalista Heverton Lacerda reforça que, para ser eficaz, o jornalismo precisa contextualizar, dar voz a múltiplas perspectivas e aplicar o princípio da precaução, alertando sobre riscos mesmo diante de incertezas científicas, ambos apoiados sobre os pressupostos teóricos que norteiam o jornalismo ambiental. Sendo possível pressionar governos e empresas a agir de forma responsável, evitando soluções superficiais ou eufemismos que mascaram a gravidade da crise ambiental.


Vivência local

Em Porto Alegre, os efeitos das mudanças climáticas não se manifestam de forma uniforme. Nas periferias, áreas historicamente marginalizadas e frequentemente ocupadas por populações racializadas, os impactos são sentidos com mais intensidade. Enchentes recorrentes, deslizamentos e queimadas, como as registradas no Morro Santana, evidenciam essa vulnerabilidade estrutural. É também no Morro Santana que está localizado o ponto mais alto de Porto Alegre. De lá, é possível avistar grande parte da cidade, alguns bairros, o movimento distante e o espelho do Guaíba ao fundo. É nesse cenário que vive Vitor Ramon, membro da rádio comunitária A Voz do Morro, criada em 2004 por moradores do Morro.

Quando as águas começaram a avançar sobre os bairros mais baixos, o Morro Santana permaneceu seco, mas sentiu os efeitos da crise de outra forma. “Ficamos sem água e sem luz por uns 15 dias, e o Morro acabou virando abrigo para muita gente”, lembra Vitor. “Aí a gente começou a pensar em como se comunicar com esse pessoal todo, criando uma teia comunicacional entre os abrigos, para ajudar quem estava aqui a se organizar e a falar com quem estava fora.” A rádio comunitária, que já funcionava como espaço de expressão cultural e de debate local, precisou rapidamente readequar suas operações. O transmissor, que estava inativo na antiga sede, foi recolocado na Escola Estadual de Ensino Médio Professor Alcides Cunha, transformada em abrigo emergencial.

As pessoas que tinham celulares rapidamente ficaram sem bateria ou desligaram os aparelhos para economizar o pouco de carga restante. Nesse cenário, Vitor conta que os radinhos de pilha e as mensagens de boca em boca se tornaram os principais meios de espalhar informações sobre onde conseguir água, alimentos e abrigo, funcionando como uma ponte entre famílias separadas pela inundação e diferentes pontos da cidade.

Em poucos dias, abrigos improvisados no Morro Santana passaram a acolher milhares de pessoas vindas de bairros e outras cidades atingidas. “Algumas famílias tinham membros em abrigos diferentes, e precisávamos criar canais para que pudessem se comunicar e se organizar”, explica Vitor. A iniciativa mostrou como a comunicação comunitária pode ser vital em situações de crise, transformando o Morro Santana em um ponto estratégico de solidariedade e coordenação, mesmo sem ser diretamente afetado pelas águas.

A comunicação feita de dentro da comunidade tem um valor que vai muito além de simplesmente transmitir informação, segundo Vitor. “Se você não vive o dia a dia da comunidade, se não compartilha as rotinas, os cumprimentos no mercado, as conversas nos bares, você acaba sendo um estranho dentro dela, mesmo estando presente”, explica. Segundo ele, a rádio comunitária não busca apenas divulgar suas ações para fora, mas criar conexões entre os moradores, fortalecendo a rede social do bairro e estimulando a participação nos movimentos e debates locais. “Nosso ponto de encontro é muitas vezes o bar do bairro. É ali que trocamos ideias, levantamos pautas e construímos histórias que ajudam a preservar a memória do Morro”.

O Morro Santana, além de ser o ponto mais alto da capital, guarda áreas em preservação de grande importância ambiental. As trilhas, que por muito tempo fizeram parte das memórias de infância de antigos moradores, hoje ganham novo sentido por meio das ecotrilhas, atividades que unem educação ambiental, turismo comunitário e preservação do território. No topo do Morro ainda é possível observar resquícios da Mata Atlântica e extensões de campos de Pampa, biomas distintos que se encontram ali, a Mata Atlântica no lado sul e o Pampa no norte do morro. Essa diversidade, aliada à posição geográfica, permite a manutenção de microclimas e oferece refúgio para fauna e flora locais, ao mesmo tempo, garantindo espaço de convivência e lazer para a comunidade.


Em uma das trilhas que levam ao ponto mais alto de Porto Alegre, você pode passar pela Pedreira do Morro Santana, um lugar marcado pela ação humana, mas com uma das vistas mais deslumbrantes da cidade — Crédito: Arthur Alves
Em uma das trilhas que levam ao ponto mais alto de Porto Alegre, você pode passar pela Pedreira do Morro Santana, um lugar marcado pela ação humana, mas com uma das vistas mais deslumbrantes da cidade — Crédito: Arthur Alves

“O pessoal segue com a posse até o final do processo”, explica Vitor. Ele lembra que, apesar da decisão, a situação ainda é delicada. “A gente tá lidando com um grupo de banqueiros, gente com influência, capital político e simbólico. São tubarões feridos, mas ainda perigosos”, afirma. Enquanto aguarda o desfecho dos estudos antropológicos e jurídicos conduzidos pela Funai, a comunidade mantém suas práticas cotidianas e o vínculo espiritual com o território. A presença no Morro reafirma que a luta pela preservação do lugar também é uma luta por reconhecimento e permanência. O processo de demarcação da área indígena no Morro Santana, se arrasta na Funai desde 2009.


Saber ancestral

Parte desse esforço de preservação é articulada também por iniciativas como o projeto de extensão Preserve o Morro Santana, da UFRGS. Coordenado pelo sociólogo e pesquisador Alexandre Magalhães, o projeto atua em parceria com moradores, estudantes da universidade e lideranças locais, como o próprio Vitor Ramon, que também estuda na UFRGS. O projeto tem como um de seus objetivos a promoção das eco-trilhas, a recuperação de áreas degradadas e a valorização do conhecimento comunitário sobre o território. A proposta busca romper com a lógica de pesquisa “de fora para dentro” e consolidar uma rede de cuidado e corresponsabilidade, onde a universidade aprende tanto quanto ensina.

O programa de extensão Preserve o Morro Santana surgiu em 2021 a partir da iniciativa de coletivos locais, que atuavam na defesa da conservação socioambiental da região. Alexandre enfatiza que o Morro Santana é uma área ambientalmente sensível, atuando como um berço natural de águas onde nascem vários arroios, e onde convivem vegetações dos Pampas e da Mata Atlântica. O professor destaca que essa riqueza biológica e hídrica torna a conservação ambiental um grande desafio. Também defende que o poder público e a academia precisam levar a sério os conhecimentos tradicionais, indígenas e ancestrais para orientar as políticas urbanas.

Ele usa como exemplo o conhecimento de lideranças como a Cacica Iracema, líder indígena da Retomada Gãh Ré: “A Cacica Iracema, da Retomada, possui um conhecimento enorme sobre as dinâmicas do morro. Ela sente o morro, ela vive o morro. O morro é parte da vida dela, parte do ser dela”, explica. Para o professor, o papel da universidade na extensão não é “levar um conhecimento supostamente superior” a populações que não o possuem. Pelo contrário, a eficácia das políticas de preservação exige a troca e o diálogo com os saberes que já existem no território. “É preciso saber como funciona a lógica de um rio, de uma mata, de um morro, e por aí vai. Levar a sério isso na relação das políticas”, afirma, destacando o conhecimento prática das comunidades.

Essa valorização do saber local se conecta à sua crítica ao modelo de produção da cidade. Alexandre e o ambientalista Heverton Lacerda pensam de forma semelhante ao questionar o paradigma do urbanismo que destrói a natureza em nome do desenvolvimento. Ele critica o modelo de “murar os rios” , transformando o circuito natural e serpenteante — como o Arroio Dilúvio da avenida Ipiranga — em uma linha reta de cimento. “Com isso você praticamente matou o rio. É a mobilidade, é o fluxo natural de vida do rio”.

Para o professor, o desastre se agrava porque a sociedade e o planejamento urbano operam sob uma falácia de separação, ignorando a dependência orgânica que temos dos ecossistemas. Argumenta que é necessário estabelecer uma nova relação com o que se chama de natureza, desconstruindo a ideia de que “a natureza está lá e nós aqui”, voltando à ideia já reproduzida anteriormente por Ailton Krenak. Alexandre defende que existe uma conexão íntima e orgânica entre esses dois universos, onde o ser humano e o ambiente se coproduzem o tempo inteiro. Essa relação de dependência mútua, sobretudo das águas, é contradita pela forma como o poder público lida e opera com os recursos vitais atualmente.

A valorização do saber local se conecta a uma crítica sobre a ineficácia do Estado em transformar o debate em ação. Observa que, no Brasil, há uma série de conferências sobre diversas políticas — raciais, urbanas, ambientais — mas “muito pouco a gente vê de resultado concreto em termos de formulação de legislação, talvez mais de legislação, mas menos de políticas públicas”. Nesse contexto, que inclui o debate internacional da COP 30, o professor revela seu parecer: “Eu tenho um pessimismo quanto a isso, porque eu vejo muito pouco, desse tipo de coisa feito pelas prefeituras, por exemplo. Ou pelo governo do Estado, sabe? É muito pouco, muito pouco mesmo”, confessa.

Para ele, a grande questão reside na incapacidade política de implementação, o que torna inaceitável viver de crises. O professor critica o ciclo vicioso de desastres e respostas parciais: “A gente não pode esperar ter mais uma catástrofe, como a gente teve no ano passado, para que os governos se movimentem. É inaceitável que isso ocorra”, questiona, rejeitando a lógica de inércia. “A gente não pode viver de catástrofe em catástrofe em que os governos prometem coisas, implementam parcialmente, e aí a gente continua a vida.”


Ciclos estruturais

A percepção desse ciclo de inércia e promessas parciais é endossada pela jornalista Rosália Fraga, fundadora do jornal comunitário Fala Cohab. A jornalista questiona o impacto real da Conferência diante da emergência climática, ela não expressa um pessimismo absoluto, mas um ceticismo sobre a capacidade dos grandes fóruns diplomáticos de converter o discurso em ação transformadora. Ela questiona se a COP 30 conseguirá gerar a mobilização necessária, comparável à que ocorreu na Rio 92. “O clima está cada vez mais quente, esses ciclones e temporais a toda hora? Não sei. Se a gente não fizer alguma coisa drástica, a nossa espécie vai deixar de existir. É simples”.

Rosália também ataca a própria terminologia do debate. Para ela, conceitos mais recentes, como o de racismo ambiental, embora válidos, muitas vezes servem como um eufemismo. A jornalista resume a questão central argumentando que esses termos são usados para abolir o debate sobre a desigualdade social e a luta de classes. Ela defende que o cerne é, na verdade, um confronto direto entre “ricos contra pobres”, onde o modelo de privilégio para poucos se sustenta à custa do sofrimento de muitos.

A distorção do debate e a negação da luta de classes se manifestam claramente na cobertura das catástrofes. Rosália critica que, durante as enchentes de 2024, a grande mídia propagou uma narrativa do “papel vencedor” do poder público e dos voluntários que ajudaram a população, e que não abordou o sofrimento, que foi direcionado à periferia. A jornalista exemplifica essa falha ao mencionar que, em exposições de fotografia sobre a tragédia, as imagens se concentraram em pontos como o viaduto Utzig no Quarto Distrito, e na limpeza pós-enchente, focando em uma imagem “mais limpa” e de manutenção. Essa manipulação da narrativa, que higieniza a tragédia e oculta a responsabilidade política, é a base para o ciclo de impunidade, reforçando a rápida inércia e o esquecimento social diante dos desastres.

A jornalista observa que essa mentalidade é sustentada por uma teia complexa de informações — inclusive por veículos que se apresentam como inovadores e independentes. “Por receberem auxílio da prefeitura, esses veículos acabam fazendo o mesmo jornalismo chapa branca, reforçando a candidatura dos que estão no poder e fingindo uma isenção”, explica. Essa alienação, segundo ela, enfraquece a capacidade crítica da comunidade e leva o morador a internalizar a culpa, reproduzindo discursos vazios como “o problema do Brasil é o brasileiro”.

“O jornalismo midiático não tem interesse em mostrar as pessoas que sofreram e continuam sofrendo até hoje, nem a realidade de comunidades como o Sarandi, onde moradores ainda esperam o reassentamento após obras do dique”. Nesse cenário, Rosália destaca que o jornalismo comunitário foi de extrema importância, pois seu papel é justamente mostrar essa realidade que está acontecendo e dar visibilidade às vítimas que a grande mídia ignora.

A ausência de políticas públicas concretas nas periferias, em contraste com a retórica da COP 30, é o ponto mais vulnerável, segundo a jornalista. Ela critica que “as poucas políticas que a gente tem são dilapidadas”, ou seja, deterioradas pela má gestão e pela falta de continuidade. Também aponta falhas municipais que impactam diretamente a crise climática e social, como a falta de coleta seletiva de lixo em dois dos bairros mais populosos de Porto Alegre — Restinga e Cohab Rubem Berta. A jornalista também critica a gestão dos recursos hídricos: a Cohab e outros bairros da Rubem Berta ficaram sem água durante as enchentes.

Rosália utiliza o Golden Lake como o símbolo máximo dessa contradição. Um empreendimento de luxo, localizado na zona sul da Capital, se vangloria de possuir o “maior lago balneável da América Latina”, com 5.000 m² de “águas cristalinas” e uma praia privativa para os moradores. Ela argumenta que a dimensão e a complexidade dessa estrutura expõem uma escolha clara do modelo de desenvolvimento urbano: enquanto projetos de alto padrão recebem investimentos e tecnologias sofisticadas para criar paisagens artificiais, as periferias seguem enfrentando carências básicas, como abastecimento irregular de água, saneamento e coleta seletiva. Para Rosália, o papel do jornalismo comunitário é fundamental: trabalhar no microssistema para cobrar propostas concretas, pois exigir saneamento básico e coleta seletiva nas periferias é a forma mais urgente de fazer com que a agenda climática global se materialize como uma política de justiça social.


Capitalismo verde

No bairro Bom Jesus, zona leste da Capital gaúcha, o som que domina as manhãs é o das prensas de ferro e das vozes que circulam no galpão do Centro de Educação Ambiental (CEA). No centro de reciclagem, os trabalhadores separam os materiais, as crianças participam de oficinas e cursos, e os funcionários conversam sobre os projetos em andamento. O CEA foi fundado em 1996, quando o território ainda era conhecido como Mato Sampaio e figurava entre os piores índices sociais do país. Criado por mulheres da periferia, lideradas por Marli Medeiros, falecida em 2018, o projeto foi erguido sobre o que havia de mais urgente: a necessidade de sobrevivência e dignidade. Hoje o Centro ainda funciona como espaço de triagem de resíduos, além de ser um ponto de formação comunitária, educação ambiental e protagonismo juvenil.

Um dos representantes da instituição é o neto de Marli, Henrique Medeiros, que cresceu entre o galpão de triagem e as atividades do Centro. Ele coordena o CEA junto de outras lideranças sendo a força que mantém vivo o legado de sua avó. “Eu nasci aqui dentro dessa parada também. Tenho tanta legitimidade como qualquer outra pessoa. Eu sou o resultado deste projeto, assim como centenas de crianças e adolescentes que passaram por aqui nesses quase 30 anos”, afirmou. Henrique dá continuidade ao trabalho de Marli, imprimindo sua própria visão progressista, conectando educação ambiental e cidadania.

Diante das tragédias climáticas e das promessas políticas não cumpridas, um ciclo que marca a vida nas periferias, Henrique oferece uma chave de leitura para compreender a inércia social. O conceito de memória líquida, parafraseado por ele a partir da ideia de modernidade líquida de Zygmunt Bauman, descreve uma sociedade que “esquece muito rápido de tudo” — uma amnésia social que se confirma nas reações passageiras diante das tragédias e crises coletivas. A ideia é, aliás, corroborada pela jornalista Rosália Fraga, que já havia exposto essa realidade ao ser questionada sobre a percepção da comunidade após as grandes tragédias. É categórica: “Infelizmente, não.” O esquecimento é tão rápido que se cria a sensação de que “sempre foi ruim”, o que acaba permitindo a reeleição da mesma classe política no poder.

É justamente essa inércia que reforça a urgência do debate climático ser protagonizado pelas comunidades mais afetadas, uma pauta já defendida por representantes da juventude em espaços globais. “O debate que acontece no Brasil é também o debate sobre a importância da pauta de justiça climática ser protagonizada pelas periferias do Brasil e do mundo, onde os efeitos e as consequências das mudanças climáticas chegam mais rápido e de forma mais devastadora. Lidar com as enchentes, com as secas, com as ondas de calor já faz parte do nosso dia a dia”, disse Marcele Oliveira, representante da juventude na presidência da COP 30, ao portal da ONU. Jovem negra e periférica, Marcele defendeu que o debate sobre o clima precisa ser protagonizado por quem vive suas consequências mais diretas, as populações das periferias e dos povos tradicionais, cujas casas e corpos são as primeiras linhas de impacto.

Na Bom Jesus, esse protagonismo já existe há muito tempo, ainda que invisível aos olhos do poder público. O CEA não é apenas um centro de reciclagem, é também um espaço de formação política e cultural. É ali que a discussão global sobre sustentabilidade ganha forma local, entre o resíduo que vira renda, a oficina que vira consciência e o projeto comunitário que se mantém apesar da ausência do Estado. Enquanto as negociações internacionais discutem o futuro do planeta, na periferia de Porto Alegre, o trabalho ambiental segue de forma concreta com pessoas que nunca estiveram no palco principal e desenvolvem ações diárias que transformam a comunidade e o seu entorno.


O setor de reciclagem é o carro chefe do CEA Bom Jesus, ali os trabalhadores realizam diariamente a coleta e a separação do lixo — Crédito: Arthur Alves
O setor de reciclagem é o carro chefe do CEA Bom Jesus, ali os trabalhadores realizam diariamente a coleta e a separação do lixo — Crédito: Arthur Alves

O impacto de Marli Medeiros transcende o próprio CEA, sua trajetória, marcada por lutas, inovação e protagonismo feminino na periferia, moldou práticas e valores que continuam a orientar a comunidade. Ao criar espaços de educação, cultura e participação cidadã, Marli construiu uma ponte entre a realidade local e os debates globais sobre sustentabilidade dos quais participou em vida, mostrando como as periferias estão na linha de frente das consequências ambientais, um papel que ficou ainda mais evidente em maio de 2024.

Foi neste período que o Rio Grande do Sul enfrentou o maior desastre climático de sua história. Em Porto Alegre, o total de chuva acumulado no mês de maio alcançou 564,8 mm, o maior valor mensal registrado desde 1916, superando os 447,3 mm de setembro de 2023 e os 405,5 mm de maio de 1941. A média climatológica para maio na cidade é de 112,8 mm, ou seja, choveu 452 mm acima da média, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). Em todo o Estado, as enchentes provocaram 185 mortes e deixaram 23 pessoas desaparecidas, segundo a última atualização da Defesa Civil. No dia 12 de maio de 2024, um pico de 78.724 pessoas desabrigadas foram registradas no início da tragédia. Um ano após o desastre, em maio de 2025, ainda havia 213 pessoas sem abrigo, e a última atualização, em 22 de agosto, registrava 81 desabrigados, de acordo com os relatórios da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social.

Apesar do impacto devastador das chuvas e suas consequências, o trabalho de organizações comunitárias segue de forma contínua, muitas vezes preenchendo lacunas deixadas pelo poder público. No bairro Bom Jesus, o Centro de Educação Ambiental (CEA) mantém suas atividades diárias, promovendo oficinas, triagem de materiais recicláveis e projetos de formação de jovens líderes, conectando educação ambiental e cidadania mesmo diante da vulnerabilidade social. Contudo, para o coordenador do Centro, Henrique Medeiros, a continuidade do legado ainda está longe de aproximar a comunidade das grandes decisões globais. “Quando que o pobre vai acessar um carro elétrico? Quando que o pobre vai acessar uma placa solar? Quando que o pobre vai ter um biodigestor? É muito lindo falar de capitalismo verde e transição energética, mas continuamos aqui chupando o dedo”, questiona, ao ser indagado sobre a distância entre o discurso global e a realidade cotidiana da periferia.

Ele critica os retrocessos provocados por privatizações e pela falta de políticas públicas inclusivas: “Como diz uma música do Zeca Pagodinho: ‘Eu não sei, nunca vi, eu só ouço falar’. O rico, que já é rico, tá lá agora sem pagar a luz da casa dele porque acessou energia renovável. O pobre, que tá sem condições, tem a luz cortada, e a CEEE privatizada só piora a situação. E tu sabe quando vai chegar uma placa solar na nossa casa? Nunca”. Henrique também aponta a desconexão dos fóruns globais com as periferias, nos eventos em que participa, muito se discute sobre temas grandiosos — salvar o planeta, foguetes, carros elétricos — , enquanto pouco se fala sobre a realidade da favela.

Henrique sintetiza uma percepção que ecoa em muitas periferias, a sensação de que as transformações anunciadas nos fóruns climáticos ainda não alcançam a base da sociedade. Enquanto as conferências internacionais exibem metas de neutralidade de carbono e celebram soluções tecnológicas, os líderes globais seguem evitando enfrentar a transformação do próprio modelo de desenvolvimento. Para a periferia, sobram apenas as promessas.




Arthur Alves
Arthur Alves

*A reportagem é fruto do TCC prático do estudante de jornalismo da Uniritter Arthur Alves, orientado pelo professor Dr. Roberto Villar Belmonte, integrante do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (Ufrgs/CNPq).

© 2021 por Agapan

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