Demilson Fortes e Andréia Carneiro*
A primeira semana de setembro de 2023 registrou a maior tragédia ambiental da história do Rio Grande do Sul, marcando para sempre uma das mais tristes páginas da memória do Estado e do país. Enquanto isso, parecendo alheios à realidade e necessidade urgente e planetária de mitigar os efeitos do aquecimento global, no Senado Federal uma audiência pública que tinha como proposta debater transição energética foi palco para a defesa da continuidade da atividade minerária, uma das principais responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa (GEE). De outra parte, a proposta orçamentária do governo do Estado para o próximo ano, recém apresentada ao Legislativo, prevê recursos pífios para o enfrentamento às mudanças climáticas.
Antes de aprofundar, vamos reavivar os recentes fatos que ocorreram no estado. Mais de cem municípios do Vale do Taquari foram afetados pela passagem do ciclone extratropical. Entre os mais atingidos estiveram Roca Sales e Muçum, que foram destruídos pela enxurrada, após a Bacia do Taquari-Antas transbordar e causar a maior enchente em décadas na região.
Os rastros do desastre deixaram, além de 404,6 mil moradores afetados e elevados impactos econômicos, 51 mortos e sete desaparecidos, conforme dados oficiais divulgados 30 dias após o ocorrido. São traumas que ficam para sempre. Há uma incerteza local para essas pessoas em relação ao futuro e uma certa perda de identidade: afinal, como reconstruir a vida em um local que corre o risco de sofrer, não se sabe quando, outra inundação? Nada está sendo fácil para as populações desses municípios, mesmo com toda a ajuda humanitária registrada.
Nas semanas posteriores, as chuvas intensas continuaram provocando alagamentos, com transtornos à população e perdas no meio rural e urbano. Foi a vez de o povo gaúcho acompanhar, estarrecido, ainda no final de setembro, o nível da água do Guaíba subir e transbordar na zona do Cais Mauá, inundando a famosa orla da Capital do Estado. O excesso de água deixou dezenas de moradores das ilhas desabrigados ou em situação de vulnerabilidade. Várias ruas em diversas regiões da cidade tiveram alagamentos. A região Metropolitana de Porto Alegre viveu dias tensos e tristes, especialmente entre a população mais pobre, que habita as áreas de maior risco.
Tais eventos climáticos se repetiram em outras regiões do Estado, caso do município de Pelotas, na região Sul. Em outros, granizo, ventos fortes e chuvas intensas causaram danos na infraestrutura e na produção agrícola. Em todos os casos, muitos cidadãos perderam seus meios de sustento e/ou pertences adquiridos ao longo de uma vida. As perdas econômicas contabilizadas são enormes. E tendem a aumentar.
Os meteorologistas vêm alertando que, em outubro, a chuva se manterá presente. Os cientistas apontam o efeito de um super El Nino, turbinado pelo aquecimento global, cuja força é destruidora. Seus impactos são terríveis e antagônicos nas diferentes regiões: enquanto no Sul do Brasil há temporais, oito estados do Norte e Nordeste batem recorde de seca, sendo esta a pior dos últimos 40 anos.
E é ai que entram as contradições daqueles que deveriam estar atentos aos riscos, caso nada seja feito. No dia 26 de setembro, uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa do Senado Federal debateu sobre “Transição Energética e os direitos da população do Rio Grande do Sul”. O encontro atendeu à demanda de um grupo de lideranças de Candiota, região carbonífera. Seus integrantes se dizem preocupados com o fim da compra de carvão da termelétrica instalada no município, o que impactará a economia local. O senador Paulo Paim, presidente da Comissão, atendendo à solicitação, encaminhou o requerimento da audiência. E, como presidente da mesma, coordenou a reunião.
Foram, aproximadamente, três horas e meia de falas. Na tribuna, de forma presencial ou virtual, se alternaram lideranças da região e deputados em defesa da continuidade da atividade carbonífera, considerada pela maioria uma riqueza da região. Durante todo o tempo, houve apenas duas falas que destoaram, sabiamente, do conjunto: a de Marina Dermmam, do Instituto Preservar, e de Francisco Milanez, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Representando a sociedade civil organizada, eles fizeram manifestações críticas e levaram a pertinente preocupação com os impactos socioambientais da atividade, em especial, em relação às mudanças climáticas.
Faz-se necessário registrar que a participação da sociedade civil somente foi possível porque a Agapan enviou mensagem solicitando a participação da sociedade na audiência. Não fosse a iniciativa da entidade ambientalista, a audiência contaria somente com convidados que pensam parecido, muito embora o representante do Ministério do Meio Ambiente (MMA) tenha se manifestado, se limitando a abordar a agenda e a governança climática no governo, sem abrir discordância sobre a continuidade das atividades de extração e uso energético do carvão.
A proposta levada pelos representantes da região de Candiota ao senador Paulo Paim, dias antes, foi de o poder público federal conceder os benefícios que Santa Catarina ganhou após uma legislação aprovada no final do Governo Bolsonaro. A Lei nº 14.299/2022, que passou pelo Congresso Nacional, prorrogou a compra de energia de termelétrica a carvão mineral do Complexo Termelétrico Jorge Lacerda, em Santa Catarina, por 15 anos a partir de 1º de janeiro de 2025, portanto, até 2040. Sua origem está ligada ao PL 712/19, que tinha como finalidade instituir subvenção econômica às concessionárias do serviço público de distribuição de energia elétrica de pequeno porte.
Na audiência, a preocupação foi centrada apenas na economia. O pouco que foi citado sobre meio ambiente foi apenas para tentar amenizar o impacto na mineração e do uso do carvão. Houve quem fizesse a defesa com convicção – e um tanto de fé – na ideia de que o carvão não tem impacto ambiental e climático. Nenhum compromisso das falas com a ciência. O importante era legitimar a ideia da necessidade da continuidade de exploração do carvão, minimizando seus impactos. Uma professora da universidade da região falou das pesquisas com carvão na carboquímica e gaseificação, algo reproduzido por outros participantes para justificar a continuidade da exploração mineral.
No encerramento da audiência o senador Paulo Paim anunciou que PL 4653/2023 estava protocolado, assinado por ele, juntamente com os outros dois senadores do Estado do RS, Hamilton Mourão e Luis Carlos Heinze. O senador proponente disse que foi ouvido o contraditório e ainda lançou um “vida longa ao meio ambiente”.
A preocupação com empregos e economia da região é legítima. No entanto, a defesa do carvão é um equívoco. Uma transição energética justa e real dever ocorrer gerando postos de trabalho em outra perspectiva, deixando para trás o carvão, envolve a adição e substituição das fontes de energia pelas de origem renovável, como hidrelétricas, eólicas, solares e de biomassas, sem perdas de postos de trabalho. É uma reinvenção necessária. Os milhões gastos anualmente para subsidiar as termelétricas que jogam CO2 na atmosfera podem ser aplicados para financiar uma transição econômica em outras bases, de acordo com as propostas da população da região.
O estudo Inventário de Emissões Atmosféricas em Usinas Termelétricas do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), publicado em 2022, classifica as usinas de Candiota III e Pampa Sul como as termelétricas mais poluentes do Brasil no critério de taxa de emissão de gases de efeito estufa em relação a energia gerada. Isso seria suficiente para decretar seu fim. Porém, além da serem poluentes, ainda demandam subsídios públicos para serem viáveis, como demonstrou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A despesa com a geração de energia a carvão em 2021 foi de R$ 750 milhões. Simplesmente inaceitável.
Na audiência pública, das muitas coisas que não foram ditas, uma delas foi deixar claro que não existe carvão sustentável, que não existe carvão limpo. Faltou reconhecer que estamos em uma emergência climática, e que a energia de origem fóssil precisa ser superada o mais rápido possível para que a humanidade tenha algum futuro.
Quando há disputa por algo na sociedade, sempre se toma como apoio a fala de um especialista ou um doutor para avalizar uma concepção, seja para o bem ou mal. Afinal, na própria ciência há divergências. Embora alguns de seus defensores ressaltem o potencial do da gaseificação trata-se de algo que gera polêmica, dúvida e contestação. Na prática, os países que utilizam carvão, caso de países da Europa, além de China e Estados Unidos, mostram que não estão dispostos a apostar nessa via, que teria de provar sua viabilidade econômica em escala com emissão zero de gases. Por que não usam? Primeiro: porque ele continua gerando CO2; segundo, porque as plantas industriais custam caro e demandam uso de muita água; terceiro, porque as tecnologias de energias renováveis mostram grande competitividade econômica. Portanto, as usinas de gaseificação não são seguras, nem limpas, nem vantajosas economicamente.
O continente e países citados investem pesadamente e colocam seus sistemas energéticos para uma transição para redução do carvão e aumentar, a cada ano, as energias renováveis em suas matrizes energéticas. Além da geração de energia, buscam gerar novas tecnologias, reforçando seus parques industriais noutra perspectiva. Não à toa, atualmente, de cada dez painéis solares instalados no mundo, sete são produzidos na China.
De outra forma, também no final de setembro, o governador Eduardo Leite enviou à Assembleia Legislativa a proposta de orçamento para 2024 (PL 429/2023). E, por incrível que pareça, mesmo diante de Emergência Climática, o chefe do Executivo não destinou recursos para elaborar o Plano Estadual sobre Mudança Climática, conforme previsto pela Lei nº 13.594/ 2010, que instituiu a Política Gaúcha sobre Mudanças Climáticas. Aliás, que até agora, não foi regulamentada. Na prática, ao não colocar no orçamento público como prioridade, o governo de Eduardo Leite, parece negar que há uma emergência climática. O retrospecto de seu governo de ataques à legislação de meio ambiente confirma isso.
A viagem do governador para Glasgow, na Escócia, para participar da 26ª Conferência da ONU sobre Mudança Climática (COP26), em outubro de 2021, parece não ter passado de mais uma peça de marketing. Ou seja, muita mídia e quase nada de concreto a ser apresentado em seu governo para o enfrentamento, mitigação e adaptação às mudanças do clima. Aliás, na audiência pública do Senado, a secretária de Meio Ambiente e Infraestrutura do RS, Majorie Kauffmann, em participação virtual, não estabeleceu discordância da proposta de continuidade do carvão, deixando evidente que o uso do carvão tem aval do governo Eduardo Leite.
Diante de tantas evidências das mudanças climáticas, em tempos de tragédias ambientais no mundo todo, defender a continuidade da mineração do carvão e seu uso para fins energéticos e não prever no orçamento público ações no sentido de agir para organizar um plano de concretizar uma política pública referente às mudanças climáticas demonstra condutas negacionistas, desprezando as evidencias das urgências e fugindo das responsabilidades públicas.
A população, ao ver no Congresso e no Governo do Estado essa ausência de prioridades com o clima, poder acabar por entender, pela mensagem passada, que ainda temos tempo. Porém, a ciência, a ONU e até o Papa Francisco nos alertam que o mundo caminha para a tragédia climática. O sumo pontífice acabou de anunciar o Laudate Deum, dando continuidade à reflexão da Laudato Si, documento sobre ecologia integral publicado em 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis.
As notícias das tragédias no Rio Grande do Sul refletem um cenário visto e várias partes do planeta. Os jornais do mundo todo estampam que julho foi o mês mais quente registrado na história. Este ano, ocorreram eventos climáticos extremos na América do Norte, Europa, Ásia e América do Sul. O futuro da humanidade está em risco. Em nome da ética com as futuras gerações que habitarão a Terra em ebulição, é preciso que se diga, sem subterfúgios: a conduta diante da emergência climática, do Senado Federal ao Palácio Piratini, é um verdadeiro escárnio.
A advogada Marina Dermmam, que participou da audiência de forma presencial, definiu bem o que representou estar ali no Senado: “me senti no filme Não Olhe para Cima”. O filme, lançado no final de 2021, abordou o negacionismo das pessoas, da mídia e do governo diante de uma descoberta científica de dois astrônomos, que detectaram um asteroide que estava na rota de colisão com a Terra. Portanto, havia uma tragédia que precisava de consciência, de uma visão realista sobre o que estava acontecendo, e ações urgentes para tentar evitar a tragédia. No filme, aconteceu o pior.
As mudanças climáticas se constituem em uma realidade concreta e estão a exigir uma resposta urgente e responsável, uma radicalidade por parte da sociedade, empresários e governos. A economia, os lucros, os votos e o resultado imediato não podem predominar.
A sociedade civil, juntamente com o movimento sindical, agricultores, pesquisadores e ativistas, derrotaram o projeto da Mina Guaíba, que seria uma tragédia para Porto Alegre. Agora este movimento tem a tarefa de enfrentar o PL 4653/2023 e impedir que a população continue a sustentar um setor poluente que contribui para levar o planeta para uma situação irreversível.
O Papa Francisco alertou: “Não reagimos o suficiente, pois o mundo que nos acolhe está desmoronando e talvez se aproximando de um ponto de ruptura”. E tudo indica que o Senado Federal e o Palácio Piratini ainda não perceberam a dimensão e gravidade dos alertas.
*Demilson Figueiró Fortes é engenheiro agrônomo, ecologista, Conselheiro da Agapan. Andréia Maranhão Carneiro é bióloga, ecologista, Conselheira da Agapan e integrante do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá)
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