Demilson Figueiró Fortes*
No dia 25 de setembro de 2012, uma terça-feira, a capa do jornal Zero Hora exibiu como principal chamada a manchete “Pressão em redes sociais barra projeto que amplia uso de agrotóxicos no RS”. Além da capa, o jornal dedicou duas páginas para o assunto. Este era o desfecho, neste caso positivo, de uma mobilização da sociedade que conseguiu interditar um retrocesso ambiental que estava em curso.
No dia anterior, o autor do projeto, o deputado Ronaldo Santini (PTB), ao ser entrevistado pela Rádio Gaúcha, tentou justificar os motivos da proposta, mas acabou tomando a iniciativa de anunciar ao vivo a decisão de encaminhar a retirada do PL. O proponente teve mérito de cumprir com a sua palavra, retirando o projeto que foi arquivado.
O gesto do referido deputado, mais do que sensatez ou reconhecimento do equívoco da gravidade ambiental da sua iniciativa, ocorreu em função da repercussão negativa da questão. Aquele momento marcava um dos momentos em que o apelo popular venceu o retrocesso ambiental.
Poucos dias antes, no dia 11 de setembro de 2012, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovava o PL nº 78/2012, de autoria do deputado Ronaldo Santini (PTB), cujo objetivo era alterar a Lei Estadual nº 7.747/82, flexibilizando a legislação dos agrotóxicos no RS. Seu relator na CCJ, o deputado Edson Brum (MDB) deu parecer favorável. O PL foi aprovado na referida comissão por oito votos favoráveis, com apenas dois deputados votando contra, Edegar Pretto (PT) e Raul Pont (PT). A maioria integrante da CCJ era um indicativo do que viria.
Diante da informação que circulou após a aprovação do projeto, seguiu-se uma ampla mobilização da sociedade civil, que se utilizou principalmente das redes sociais, em especial o Twitter, como ferramenta de disputa de informação e crítica, juntamente com o envio de manifestações de entidades à Assembleia contra a aprovação do projeto. Somou-se a isto a divulgação do retrocesso em curso e sua repercussão na grande mídia, que potencializou o fato e fez a informação chegar mais longe, resultando na histórica entrevista na Gaúcha e a retirada de tramitação após compromisso verba do deputado à reportagem.
Passados alguns anos, a história se repete. O governador Eduardo Leite (PSDB), enviou em dezembro do na passado à Assembleia Legislativa, em regime de urgência, o PL n° 260/2020, alterando a mesma Lei n° 7.747/82, que tem como objetivo flexibilizar o mesmo dispositivo.
Com essa iniciativa, o governo Leite se posiciona contra uma lei histórica, que colocou o Estado do RS na vanguarda da defesa da saúde pública e da proteção ambiental, reforçando e mostrando claramente a visão que comanda o Executivo, que também é responsável pelos retrocessos no Código Estadual do Meio Ambiente.
No final de 2020, a combinação de uma nova e forte mobilização social com a agenda apertada na Assembleia Legislativa, o governo se concentrou na sua prioridade de manter as alíquotas de ICMS para garantir o caixa, retirando a urgência para viabilizar a aprovação do projeto do imposto.
Em fevereiro de 2021, em reunião com entidades e deputados da oposição, liderados pelo deputado Edegar Pretto (PT), o governador assumiu o compromisso de deixar tramitar no rito ordinário, com apreciação nas comissões de mérito.
Porém, neste mês de abril, a Casa Civil informou ao deputado que vai voltar a apresentar o projeto no Legislativo para tramitar com urgência, ou seja, sem qualquer debate. Se fizer isso, o governo Eduardo Leite (PSDB) descumprirá a sua palavra, o que não será a primeira vez que acontece. O setor do agrotóxico faz lobby e tem pressa porque sabe que pode perder a ação que tramita no Supremo Tribunal Federal, que vai julgar a constitucionalidade da lei estadual. E isso tudo, lamentavelmente, chega num momento em que o país está mergulhado nas trevas, sob um governo federal que despreza o meio ambiente e quer “passar a boiada”.
Mas vamos contextualizar os acontecimentos. Em 1971, era fundada a Agapan, marcando definitivamente o movimento ambientalista organizado e independente no país. A Lei Estadual n° 7.747/1982, proposta pelo então deputado Antenor Ferrari (MDB), depois de amplo e intenso debates com a sociedade e fundamental participação da Agapan, é anterior à lei federal. Tanto que colocou o Estado do RS no patamar dos países europeus que estavam pautando debates de proibição de princípios ativos causadores de câncer, mutações genéticas, problemas no sistema nervoso e hormonal, entre tantos outros problemas de saúde pública. A lei gaúcha, portanto, estabeleceu um pressuposto básico: se está proibido no país sede da empresa detentora da patente, não poderia ser fabricado ou comercializado no Estado.
O texto, de forma pioneira, estabeleceu um regramento fundamental para a preservação da vida. Em seu artigo 1º, condiciona a distribuição e comercialização no território do Estado do Rio Grande do Sul de todo e qualquer agrotóxico e outros biocidas ao prévio cadastramento no órgão ambiental estadual. E no parágrafo 2º estabelece o aspecto que ainda o diferencia da legislação federal e que motiva as tentativas de alteração: “se resultantes de importação, tenham uso autorizado no país de origem”.
A Lei de Agrotóxicos é anterior à existência da legislação federal. Sua aprovação foi o resultado de um contexto de crescimento da organização dos movimentos sociais do campo, do esgotamento do modelo agricultura que mostrava os seus problemas sociais e ambientais, em que a crítica do movimento ambientalista ao estilo de desenvolvimento tornava-se mais visível e aceita, e também, da redemocratização do país que permitia a crítica pública e a organização social e política.
Na ocasião da aprovação, o governador à época, vetou parcialmente a lei, entre outras partes do texto, o parágrafo 2º do Artigo 1°. Porém, a Assembleia Legislativa derrubou o veto, garantindo o texto tal como aprovado. Ferrari, que tinha assumido a presidência da Assembleia Legislativa, teve a oportunidade de dirigir a sessão plenária em abril de 1983, que rejeitou o veto do governador Amaral de Souza. Poucos dias depois, no mesmo mês de abril, a lei foi promulgada no seu texto integral. Naquele momento os setores dos agrotóxicos sofriam a sua maior derrota e há quase 40 anos insistem nas mais variadas formas de pressão e estratégias para mudar a lei.
A história da criação da lei e das tentativas de alterá-la nos remete a uma reflexão. Chamo a atenção para dois aspectos, especialmente: a importância da participação ativa da sociedade nos processos decisórios e o livre acesso à informação. Esses fatores são essenciais, sendo pilares da democracia e condição para o exercício pleno da cidadania.
Como regra, quem busca impor retrocessos ambientais ou de direitos da população quer pressa, bem como evitar o debate público. Agem assim para evitar que a sociedade tenha as informações necessárias, participe e decida livremente sobre o seu destino. Não é à toa que a projeto de alteração do Código Estadual do Meio Ambiente foi enviado ao parlamento gaúcho com urgência e da mesma forma a mudança da lei dos agrotóxicos.
A legislação ambiental, entre tantos instrumentos da qual dispõe, inclui o direito à informação e a participação. Ou seja, abre para a sociedade o acesso às informações e envolvimento social, aspectos que provocam a irritação de quem controla a economia e a velha tradição política.
O princípio da informação é fundamental para a preservação do meio ambiente. Está entre seus alicerces. A Constituição brasileira, Art. 5°, inciso XXXIII estabelece que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
A Lei n° 6.938/1981, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, cria o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), uma inovação que orientaria a formação de colegiados para definir regras ambientais. A Lei, entre seus instrumentos, estabelece no Art. 9°, inciso VII que “o sistema nacional de informações sobre o meio ambiente”, e no XI que “a garantia da prestação de informações relativas ao Meio Ambiente, obrigando-se o Poder Público a produzi-las, quando inexistentes”.
No mesmo sentido, a Lei n°10.650/2003 dispõe sobre o acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama, determinando no Art. 2° que os órgãos e entidades da Administração Pública, direta, indireta e fundacional, seus integrantes permitam o acesso público aos documentos, expedientes e processos administrativos que tratem de matéria ambiental, fornecendo todas as informações ambientais.
Na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, o Principio 10 busca tornar as informações sobre o meio ambiente disponível para as pessoas: “A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular a conscientização e a participação popular, colocando as informações à disposição de todos. Será proporcionado o acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que se refere à compensação e reparação de danos”. Trata-se de um marco importante na construção da governança ambiental, orientando e qualificando processos decisórios.
Assim, portanto, pode-se supor que boa parte dos adversários das leis ambientais também repugnam, ou, no mínimo, temem a democracia, pois essa é uma das fortalezas da legislação ambiental, abrindo as questões para o debate na arena pública, proporcionando que as informações não fiquem restritas à burocracia, às direções, aos advogados e técnicos, ou seja, obrigando que as mesmas sejam acessíveis a um público amplo. Ao superar a visão dos especialistas e do segredo, empodera-se assim a sociedade contra o poder das grandes corporações.
Cada cidadão tem o direito de saber os eventuais impactos que ele e sua família estarão se submetendo, quais os benefícios e quais os prejuízos. Trata-se de um direito saber sobre as externalidades ambientais negativas dos projetos econômicos, que muitas vezes escondem ou minimizam os impactos socioambientais.
Os conselhos, que proporcionam a participação da sociedade organizada – e a Agapan participa de muitos deles – atrapalham quem quer passar o trator ou a boiada. Neles, é necessário apresentar argumentos e conteúdos técnicos consistentes e é possível o contraponto, ou seja, a informação é socializada.
Cinco décadas depois da fundação da Agapan, muito embora tenhamos evoluído na legislação protetiva do meio ambiente é angustiante saber que parcela significativa dos governantes, legisladores e empresários não percebeu o que está em disputa. Que não se trata de cuidar somente de plantas e animais, mas de nós mesmos e dos que virão.
Acredito que nesse período histórico, mais do que nunca, fica evidente que defender a democracia é defender o meio ambiente. Para haver êxito na proteção ambiental é necessário fazer a defesa da democracia e da Constituição contra todos os retrocessos. Governos autoritários, mesmo os eleitos, não toleram oposição e críticas, não gostam do debate público. Desta forma, a luta do ambientalismo deve ser a bandeira da democracia na sua radicalidade.
Tomamos como referência, na conjuntura política global, os Estados Unidos, onde a democracia e a mobilização colocou aquele país em outra direção e faz com que tenhamos algum otimismo. O presidente democrata Joe Biden colocou os EUA de volta ao Acordo de Paris e anuncia grandes investimentos para o país transitar para outra base energética. A política está no centro das nossas vidas, podendo nos levar a ter esperança ou apressar o colapso.
A vida nos ensina que não há derrotas nem vitórias definitivas. O aprendizado é que ela é feita de batalhas que travamos orientados por nossas convicções, sonhos e valores.
Em 2012 a mobilização derrotou o PL 78/2012. Em 2021 a luta é para derrotar o PL 260/2020 e manter a lei que desde a sua construção teve adversários.
É bom lembrar que, em 2012, a Fepam negou registro de alguns produtos químicos, fazendo com que algumas das empresas entrassem na Justiça para reverter a proibição que, na ocasião, foi confirmada em primeira instância. As empresas recorreram e, em 2014, decisões do Tribunal de Justiça do RS retiraram da Fepam o poder de impedir o registro de agrotóxicos proibidos em outros países. O órgão recorreu ao STF buscando reverter as decisões. Atualmente, aguarda-se o julgamento no STF de ação que questiona a lei gaúcha por proibir a venda de alguns produtos. Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 221 proposta pelo Partido Democratas (DEM), em novembro de 2010, cujo relator é o ministro Dias Toffoli.
Em 1982, a construção da Lei n° 7.747 motivou a sociedade organizada, que participou intensamente, construiu uma grande vitória e fez história. Em 2021, as lutas continuam, é preciso derrotar o PL 260/2020. O Brasil tornou-se o campeão de uso de agrotóxicos no mundo. Temos de nos orientar pelo sonho e nos colocar a desafiadora tarefa de construir conscientemente um futuro em que o país será referência em agroecologia.
Em 1971 e em 1982, a Agapan foi fundamental. Agora, nestes tempos de incertezas e retrocessos ambientais, mais do que nunca, a entidade se tornou imprescindível. Tenho certeza que as gerações que comemorarem os 100 anos hão de reverenciar, agradecer e se orgulhar de todos que dedicaram parte das suas vidas pela defesa da vida e do direito do futuro existir.
Que o espírito de luta em defesa do meio ambiente de José Lutzenberger, Magda Renner, Augusto Carneiro, Hilda Zimmermann, Giselda Castro, Henrique Luiz Rossler, Flávio Lewgoy e tantos outros que dão continuidade a essa luta, homens e mulheres ambientalistas, nos inspire. Que tenhamos disposição para o ativismo e consigamos manter-nos no compromisso ético com as futuras gerações, que isso nos mova para novas batalhas em defesa da existência da vida e da sustentabilidade. A sociedade civil organizada precisa influenciar no processo decisório.
*Engenheiro agrônomo formado pela UFPel, associado da Agapan, trabalhou no Cetap com assessoria em agricultura ecológica na região de Passo Fundo, com assentamentos da reforma agrária na região de Bagé. Foi assessor da Fetraf, e, atualmente, é assessor técnico em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Bancada do PT na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Este artigo reflete a opinião do autor, não necessariamente da Agapan.
Associados podem submeter artigos para publicação através do e-mail agapan@agapan.org.br
Comments